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REVIEW: Spiritfarer e o difícil dever de dizer adeus

Existem jogos que são pontos fora da curva. Aqueles títulos que abordam uma temática mais humana e sensível, utilizando as ferramentas e preceitos encontrados em games mais tradicionais. Esse é o caso de Spiritfarer, lançado este ano e produzido pela Thunder Lotus. A mesma responsável por títulos como Jotun (2015) e Sundered (2017).

Spiritfarer usa de uma premissa simbólica para falar sobre o luto, mais precisamente a superação desse sentimento de perda. Só que o game se destaca em vários aspectos pela sua abordagem simplória e, ao mesmo tempo, profunda. Repleto de metáforas, simbolismos e personagens cativantes, é difícil não se identificar com a história da protagonista Stella, mesmo que seja apresentada de forma bem subjetiva.

https://www.youtube.com/watch?v=UWsYE304k94

Uma missão difícil, mas não impossível

A jornada começa quando Stella e seu gato, Daffodil, acordam em um mundo místico, a bordo de um barco sendo conduzido por Caronte. Quem é fã de mitologia muito provavelmente já está familiarizado com sua lenda, pois ele é o barqueiro que conduz as almas até a outra margem do rio Arqueronte, que divide o mundo dos vivos e dos mortos.

Spiritfarer 3

O barqueiro então diz a protagonista que irá se aposentar, e que agora cabe a ela conduzir os espíritos até a passagem para o outro lado do Portal Eterno. Porém, ela deve cuidar de seus passageiros para que eles estejam prontos para tal feito. Satisfazendo seus anseios de todas as formas possíveis. Caronte então dá a Stella a Luz Eterna, o símbolo que estabelece o status de barqueiro à garota, sendo uma personificação da esperança para os perdidos.

Por fim, Caronte diz que cabe a personagem encontrar seu próprio barco para tal missão, apontando o local onde provavelmente ela encontrará um em bom estado. Nenhuma introdução sobre o passado de Stella é mostrado, estimulando o jogador a tentar descobrir o porquê de a jovem de chapéu pontudo ter sido a escolhida para o trabalho.

Quando o jogador chega ao seu barco, conhecemos o primeiro espírito errante, Gwen, que dialoga com a personagem de maneira bem familiar, como se conhecesse a garota há anos. Nesse momento descobrimos que a aventura em Spiritfarer, será muito mais intimista do que pensávamos.

Familiar e cativante

Durante a jogatina, temos que cumprir os pedidos dos espíritos a bordo. As missões variam de leva-los até um lugar familiar, buscar objetos e até mesmo preparar pratos especiais que remetem a momentos marcantes de suas vidas. Para isso, o jogador precisa explorar as diversas ilhas espalhadas pelo mapa do jogo coletando recursos como madeira, minérios, animais e sementes.

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O mais interessante é que o jogo não se resume a apenas coletar todos esses itens, mas também transformá-los. Ao garimpar um metal como alumínio, por exemplo, ele pode ser transformado em um lingote (moldada em formato de tijolo) para ser usado em construções distintas. O mesmo pode acontecer também com alimentos como a azeitona, que pode ser transformada em azeite para ampliar ainda mais o cardápio dos passageiros.

Parte desses recursos só são encontrados em locais específicos, obrigando o jogador a explorar o maior número de ilhas possível, mas o próprio jogo incentiva essa exploração estabelecendo missões principais nos locais certos. Quanto mais recursos coletamos, mais fácil é a construção de novas oficinas, casas e melhorias para o barco.

O sistema é bem parecido com figurinhas carimbadas de simulação de fazenda como Harvest Moon, Animal Crossing e Stardew Valley. Só que nesse caso o terreno acaba sendo o próprio barco, que pode ser ampliado e transformado em um verdadeiro “cruzeiro” para os espíritos a bordo. Como sou impaciente para certos tipos de jogo, algumas vezes empaquei justamente por não ler a descrição de um item que estava comigo há horas.

Tirando esse fato causado por minha falta de atenção, Spiritfarer não é um game  que traz grandes desafios em seu gameplay. O foco mesmo é a exploração, administração de recursos e a história de cada novo passageiro. O que também não quer dizer que é um jogo entediante, pelo contrário, há sempre algo a se fazer. Conforme o barco vai se expandindo, as responsabilidades crescem de forma proporcional, tornando as longas viagens entre uma ilha e outra mais dinâmicas.

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Nossa protagonista também precisa de novas habilidades para acessar locais difíceis. Para isso precisamos coletar os Óbulos, que são moedas que os passageiros entregam a você como pagamento pela viagem. Podemos adquirir a habilidade de planar, usar a tirolesa, usar o pulo duplo, entre outras. Essa dinâmica ajuda também na exploração, já que devemos voltar à locais conhecidos para acessar áreas que necessitam de habilidades específicas.

Todo esse sistema de upgrades é rico e muito bem equilibrado. Há sempre algo novo para descobrir e uma forma diferente de usar nossos recursos. Até o final do jogo, haverá novos upgrades para serem desbloqueados, satisfazendo aqueles que buscam os 100% e o famoso troféu de platina.

Sensível, humano e emocionante

Cada passageiro possui uma personalidade distinta, seus espíritos são representados por animais e outros seres que incorporam essas individualidades. Gwen, por exemplo, era de uma rica família aristocrata e seu espírito é representado por um cervo pomposo. Já o simpático Atul, em forma de sapo, era um homem gentil, trabalhador e querido por todos. Uma de suas grandes paixões era comer.

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Durante as viagens, conversamos com cada um deles para descobrir trechos de suas vidas. Momentos de alegria, traumas, anseios e sonhos, que de alguma forma não puderam solucionar enquanto estavam vivos. Durante um desses diálogos confesso que foi difícil não segurar as lágrimas. Já que a uma dessas histórias me fez lembrar da minha vó, que sofre da mesma doença que acomete a personagem Alice.

Até mesmo o rabugento Bruce, que defende seu irmão com unhas e dentes, revela uma fragilidade e sensibilidade dos roteiristas que impressiona pela diversidade dessas personaldiades. São nesses momentos que Spiritfarer toca verdadeiramente no coração dos jogadores, nos fazendo lembrar de que um momento especial com um ente querido deve ser aproveitado ao máximo.

Como disse anteriormente, tudo é muito subjetivo em questões de história. Por tanto é importante atenção aos diálogos para entender melhor a ligação deles com Stella, suas vidas e o que os levou à morte.

Visualmente impecável

Sentar para pescar na popa do barco enquanto aprecia o pôr-do-sol, ou admirar um eclipse com direito há um show de estrelas cadentes. Essas foram atividades que pratiquei bastante durante o gameplay de Spiritfarer. Seus gráficos em 2D abusam das tecnologias atuais sem nenhum pudor, apresentando efeitos de luz de encher os olhos.

A animação dos personagens também impressiona, com uma movimentação fluída e bastante expressiva. Me fez até pensar que estava assistindo a um desenho animado, passando por cenários que permeiam do bucólico ao urbano. Sempre fazendo referência aos lugares em que Stella conheceu em vida.

Conhecemos luxuosos vilarejos europeus, montanhas com casas típicas do Japão, florestas densas e até mesmo grandes cidades contemporâneas. Apesar das limitações proporcionadas pelas ilhas, os produtores conseguiram criar um mundo vasto e com cenários variados, convidando o jogador a apenas admirar as imagens em certos momentos.

Vale um destaque também para o gatinho Daffodil, que em suas trapalhadas mostra todo o cuidado que tiveram com as animações. Esse pet inclusive é jogável em um modo coop, mas não tive a oportunidade de testar para essa análise.

Expressões faciais, gestos e sons são usados de forma primorosa. Transmitindo com fidelidade a emoção dos diálogos que só ocorrem por textos. Como nenhum jogo está livre de problemas, os bugs ocorrem de forma pontual e não atrapalham nosso progresso durante o jogo. Alguns são até engraçados, como a ovelha que ficou louca de um lado para o outro no barco enquanto eu jogava.

Toda emoção também é transmitida através da trilha sonora, composta por Max LL – que já trabalhou anteriormente em Sundered, também da produtora Thunder Lotus. Os tons melancólicos e relaxantes das faixas são a cereja do bolo na carga emocional que o game carrega, até mesmo nos momentos de adrenalina como nas chuvas de meteoros, somos embalados por canções que inspiram e fazem o jogador se sentir um verdadeiro explorador.

O ponto fora da curva que acertou em cheio

Spiritfarer é um daqueles jogos que mexe muito com as emoções do jogador, todos os elementos colocados ali proporcionam uma experiência diferenciada até mesmo entre os títulos indie. É mais uma prova da diversidade e atipicidade que os games podem alcançar como obras de arte e produtos de entretenimento.

A reflexão e a mensagem proposta pela história são de uma importância que acomete a todos. Pois ninguém está salvo do destino final, cabendo aos que ficaram lidar com a dor da perda e as lembranças de pessoas queridas que já se foram, o luto propriamente dito.

Com uma mecânica rica e ao mesmo tempo simplista, a Thunder Lotus entrega um game completo, que dialoga com o jogador como pessoa, foge do tradicional e mais do que merece sua indicação no The Game Awards 2020, na categoria “Jogos de Impacto”. Nessa categoria, games criados com mensagens sociais importantes disputam o troféu do Oscar dos Games, sendo que este com certeza é um concorrente de peso.

Spiritfarer está disponível para PC, Mac, Linux, PS4, Nintendo Switch, Xbox One e Google Stadia. Totalmente localizado para português do Brasil.

Este game foi analisado no PC, com cópia cedida pela Thunder Lotus

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Angelo Prata

Jornalista apaixonado pela arte do século XXI chamada de videogame. Tentando melhorar a internet um post de cada vez, este sagitariano que vos fala tem dificuldades em escolher um jogo favorito. As séries Super Mario, Resident Evil, Donkey Kong e Mass Effect estão no top da minha lista imaginária e sim, sou fã da Nintendo!
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